Em 1996, Fight Club, a
primeira obra publicada do escritor Chuck Palahniuk, via a luz do dia,
recebendo considerável atenção pelo estilo de escrita peculiar do autor e pelos
tons negros de critica ao consumismo e ao machismo tóxico. Não tardaria a gerar
interesse "hollywoodesco" e, em 1999, a versão cinematográfica foi
lançada, tendo uma recepção morna por parte do público Norte Americano
inicialmente, sendo mesmo ultrapassado, nesse ano, por 10 Coisas Que Odeio Em
Ti, Ana e o Rei ou Gigolo Profissional (sim, Rob Schneider conseguiu superar
Brad Pitt e Edward Norton juntos!). No entanto, após o lançamento no mercado do
home cinema, o filme ganharia uma nova vida, atingido o estatuto de "obra
de culto" e sendo hoje considerado, ainda que de forma bastante liberal,
"o filme que definiu toda uma geração". Não foi!
Realizado por David Fincher e escrito por Jim Uhls (que após este argumento,
foi um dos responsáveis por Jumper, vá-se lá saber como), Fight Club
apresenta-nos um protagonista sem nome, que nós ficamos a conhecer como
"Narrador" (Edward Norton), um homem com uma vida rotineira, preso a
um trabalho que não o completa e obcecado por catálogos do IKEA, tendo como
objectivo major a decoração do seu domicilio com as peças mais respeitáveis de
mobiliário. A sofrer de insónias e depressão, o Narrador vai a grupos de
interajuda, onde encontra a paz e o descanso que tanto almejava até Marla
Singer (Helena Bonham Carter), uma mulher que não sofre de nenhuma maleita
terminal, se intrometer nos mesmos grupos, reflectindo assim a sua farsa e
fazendo com que o Narrador reverta o seu estado de paz interior. É nesta altura
que ele conhece Tyler Durden (Brad Pitt), um fabricante de sabão que, depois de
o introduzir a uma ideologia libertária e desprovida de bens materiais, o leva
a iniciar uma luta entre os dois, formando assim um grupo secreto reservado a
homens conhecido como "Clube de Combate".
Fight Club, tal como o livro em que é baseado, é uma negra critica à sociedade consumista e à dependência dos bens materiais ou, nas palavras de Tyler Durden: "As coisas que tu possuis, acabam por te possuir". É também uma critica ao machismo tóxico e ao anarquismo ideológico, mas relativamente a esses pontos, já lá chegarei.
SPOILER ALERT: Tendo um dos mais famosos e bem elaborados plot twists do cinema, é-nos revelado, perto do final, que o Narrador e Tyler Durden são a mesma pessoa, sendo que Tyler, fruto da imaginação do personagem de Edward Norton, assume o controlo, tornando-se na persona mais dominante e influente dos dois, sem que o Narrador tenha qualquer controlo sobre a sua dupla personalidade, pelos menos conscientemente.
Tyler é o completo
oposto do Narrador: é extrovertido, desvaloriza a opinião que outras pessoas
possam ter de si, é despegado de bens materiais, tem empregos temporários que
servem para pagar as contas básicas (onde pelo meio urina em sopa ou
insere frames de material pornográfico em películas de filmes
familiares) e descreve como a grande crise desta geração o facto de estrem
vivos.
A aparição de Tyler Durden surge como uma manifestação do id do Narrador. Tyler é livre em todos os aspectos que ele não é, mas, no seu íntimo, desejaria ser. Ainda que uma manifestação levada ao extremo. Esta revelação é pressagiada habilmente ao longo do primeiro acto do filme. Fruto da depressão e insónia, Tyler aparece 4 vezes ao Narrador, de cada vez, em 1 frame fugaz inserido no filme (semelhante ao que Tyler faz na sala de projecção), o que devia ser um momento de ligeira confusão para quem estivesse numa sala de cinema, em 1999, sem a capacidade de parar e fazer "rewind" para conferir o que aquilo foi (o Home Cinema veio estragar tudo)! Para além disso, por duas ocasiões, é possivel vislumbrar Tyler esparramado na tela antes da apresentação formal. Estas visões deixam de acontecer quando o Narrador encontra Paz interior e libertação através do choro e testemunho da dor alheia, mas regressam com a entrada de Marla em cena.
Com Fight Club, a figura de Tyler Durden ficou impressa na cultura popular como símbolo de liberação, masculinidade e anti-consumismo. Uma forma de heroi (ou anti-heroi) moderno. No entanto, Tyler acaba por ser o vilão da narrativa, mesmo que o espectador não se aperceba.
Fight Club cai numa
sub-categoria de filmes que aborda o conceito de Alter-Ego. Tipicamente temos o
personagem principal, cuja personalidade apresenta falhas (geralmente de acordo
com o conceito socialmente aceitável), que podem incluir conformismo, falta de coragem,
introversão, medo do confronto directo (entre muitas outras variáveis), podendo
estas características serem resumidas no conceito do nosso personagem não estar
a aproveitar a vida em pleno. O Alter-Ego surge geralmente em forma de dupla
personalidade (ou, mais correctamente, Distúrbio de Identidade Dissociativa) -
Fight Club, Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1931), Me, Myself and Irene (2000) (sim, o
filme com Jim Carrey, com o conceito muito mal explorado) - ou de um factor
externo que faz o personagem revelar o seu id - Spider Man 3 (2007), The Mask
(1994) (sim, o filme com Jim Carrey, com o conceito muito melhor explorado).
Geralmente esta manifestação de personalidade é apresentada como positiva
inicialmente, mas com a revelação do lado negro que isso implica, a resolução
caminha no sentido de suprimir (matar) o Alter-Ego, ficando o nosso herói com a
personalidade melhorada, mas sem os efeitos nefastos daquela relação.
É neste contexto que
vemos o machismo tóxico, como forma dominadora e destrutiva (o clube é só para
homens). Curiosamente, este assunto seria igualmente abordado no ano seguinte
em American Psycho, um filme que também aborda o conceito de Alter-Ego, ainda
que de uma forma mais subtil, com a construção de uma crítica ácida ao
consumismo, corporativismo e a despersonalização do elemento humano, mas desta
vez ao lado de um personagem de "colarinho branco".
Como tal, o Alter-Ego tem de ser eliminado. A morte de Tyler (através de um método bastante questionável) representa a castração dos elementos negros do id e a assimilação de características mais socialmente positivamente libertadoras por parte do Narrador. No entanto, até o final do filme tende para o tradicionalismo, com o Narrador e Marla a ficarem aparentemente romanticamente ligados, quando, enquanto Tyler, a sua relação era apenas de coiso!
Sem comentários:
Enviar um comentário