terça-feira, 31 de janeiro de 2017

The Lobster (A Lagosta) - A Monotonia da vida Feliz


Imaginem um mundo onde a sociedade pressiona as pessoas solteiras a encontrarem um parceiro e formarem uma família  para não morrerem sozinhas, para que não sejam postos de parte pelos seus pares! Ridículo, certo? Imaginem viver num mundo assi... Oh.... espera lá!

The Lobster (2015) é a primeira longa-metragem de língua inglesa do realizador e argumentista grego Yorgos Lanthimos (quem?) que, entre outros projectos, é responsável pelo singular "Canino"(2009). Apresentado num futuro distópico, The Lobster dá-nos a conhecer uma sociedade em que os solteiros enfrentam um destino não muito favorável: têm 45 dias para encontrar um parceiro, ou então serão transformados num animal à sua escolha.
Neste lote de desafortunados encontra-se David (Colin Farrell), recém-trocado pela sua mulher, que é enviado para um hotel onde deve encontrar a sua alma gémea. Caso não tenha sucesso, David quer ser transformado numa lagosta porque, segundo ele "chegam a viver 100 anos, têm sangue azul como a realeza e permanecem férteis toda a sua vida".


The Lobster é uma aguçada crítica à sociedade e às convenções que pressionam as pessoas a encontrarem um par para terem uma vida "normal". Os solteiros são aqui cidadãos de segunda, perseguidos pelas autoridades e olhados de lado pelas restantes pessoas. O destino que os aguarda, caso não consigam um parceiro, é a humilhação de viver como animal, eternamente postos de parte.

O filme é uma comédia negra, que leva o seu tempo. Com planos fixos onde nada acontece, a monotonia instala-se. Mas é uma monotonia com razão de ser. Os personagens são praticamente unidimensionais, muitas vezes com discursos mono-tónicos. Quase desprovidos de emoções, guiados por opções binárias (bissexualidade, que é isso?), os solitários procuram um parceiro, não com base na personalidade, mas sim numa característica em comum. No caso de David, a sua incapacidade de enxergar sem óculos.


Colin Farrell (mais gordinho) dá-nos aqui uma interpretação longe dos seus tempos de escolhas duvidosas *coughdaredevilcough*, com um David que não se distância muito do resto dos seus pares. Monótono, artificial, disposto a mentir a si próprio e a fingir ser uma pessoa que não é, só para conseguir "engatar" uma mulher. Aliás, David é o único personagem com nome próprio definido. O espectador nunca chega a saber a identidade dos restantes. E isso não interessa. É esse o objectivo.

Mesmo quando David resolve fugir e juntar-se a um grupo de solitários que também se escaparam, o panorama não é muito favorável. David pode agora masturbar-se (!!!), mas está impedido de qualquer contacto intimo com os restantes membros. A troca de um extremo por outro!


A genialidade em The Lobster passa por dar ao espectador tudo aquilo que ele não quer, mas que aceita de bom grado. A monotonia presente em todo o filme, a quase completa falta de emoções dos personagens, o tom artificial das suas representações, a música aborrecida e repetitiva ao longo das cenas do hotel, tudo isto serve para nos acentuar o absurdo desta sociedade, que na verdade não é muito diferente da nossa. As pessoas julgam-se por uma característica, em vez de um todo e o amor é puramente artificial.

Mesmo quando David encontra (ilegalmente) o seu par ideal (Rachel Weisz) no meio dos solitários foragidos, a sua relação é baseada numa característica comum: os problemas de visão! O final aberto deixa-nos pendurados, entre a escolha do sacrifício ou o egoísmo de David: em ambos os casos, trágico e absurdo!


O filme, que conta ainda com John C. Reilly, Léa Seydoux e Ben Whishaw, foi nomeado ao Óscar de melhor argumento e ganhou o Prémio do Júri no festival de Cannes.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Moonlight - Thug Life com música clássica

Então os Oscars são esta semana e o blog está mais parado que o D. Quixote do Terry Gilliam? Mentira! Reparem, isto não passa de uma fase contemplativa. Tal como um plano longo e estático reposiciona a atenção e as prioridades do espectador a ausência de actividade no blog também carrega uma carga criativa que reforça os artigos anteriores e profetiza os seguintes.

Se fossem pessoas decentes e viessem ao blog todos os dias este conceito mudar-vos-iria a vida. Enfim.

O Oscar de melhor título do ano vai para "In Moonlight Black Boys Look Blue". 

Três porções da vida de Chiron são apresentadas por actores de idades diferentes num registo próximo e documental.  Little é a alcunha de um rapaz negro e enfezado de 9 anos. Perseguido pelas outras crianças e negligenciado pela mãe que tenta esconder uma adição a crack minimamente comum nos bairros necessitados é encontrado por Juan, um traficante da zona que juntamente com a namorada, Teresa, ganham alguma responsabilidade pela criança.


A casa de Teresa tornou-se um ponto de refúgio para Chiron com 16 anos. No segundo segmento sofre a mesma repressão, desta vez no colégio. Afasta-se várias vezes da própria casa perante os abusos da mãe e vive cada vez mais preso dentro de si próprio. A sua primeira experiência homossexual deixa-o confuso e apático, levantando nele ainda mais uma sensação de irregularidade.


Com 30 anos, Black é um traficante em Atlanta. Apático e metódico, caminha nos passos de Juan pela importância, mesmo que passageira, que ele teve na sua vida. Recebe chamadas constantes da sua mãe, pedindo que a vá visitar. Quando recebe uma chamada do rapaz do seu passado regressa à Miami onde cresceu, criando agora ele, o desconforto de ser alguém totalmente diferente.


Apesar do título usar uma só palavra, a metáfora veicula todas as ideias do filme. Afirma temas seculares de preconceito e identidade sexual colocados num contexto que permite uma observação reformada mas real. E singularmente bela.

domingo, 1 de janeiro de 2017

A Passagem da Noite - A Inocência Perdida em Português


É difícil esclarecer ao certo o paradigma do cinema Português. Geralmente afastado do seu próprio público, as razões para este distanciamento não são claras, embora haja várias teorias do que poderia ser. Independentemente deste afastamento, uma coisa é certa: o cinema Português tem qualidade e está cheio de pérolas que poucos conhecem. A Passagem da Noite é uma delas.

Realizado e escrito por Luís Filipe Rocha, em 2003 e produzido por Paulo Branco, A Passagem... traz-nos a história de Mariana (uma magnifica Leonor Seixas), uma jovem de 17 anos que é violada por um drogado e, em consequência disso, fica grávida. A vida de Mariana muda por completo: afasta-se do namorado, dos pais, ao mesmo tempo que tenta lidar com a gravidez e com o bebé indesejado. Nesta tormenta, aparece um inspector da Judiciária (João Ricardo) que, ao mesmo tempo que investiga um caso de homicídio no qual o violador poderá estar envolvido, vai ajudar a jovem neste caminho.


A Passagem da Noite é um filme que é muito mais que uma história trágica. É a perda de inocência de uma pessoa e a sua passagem forçada e prematura à idade adulta. É o isolamento de uma miúda incutida no espectador. O filme começa e em poucos minutos parte-se para o mote principal. A rapariga é violada, off-screen, e o espectador só vê a imagem de um fígado a ser cortado por uma faca. É poderoso e eficaz. A partir daqui é uma descida ao isolamento da jovem e nós senti-mo-lo também. Mariana não conta a ninguém o que aconteceu, nem mesmo à Polícia, recusando identificar o violador. Acaba com o namorado, sem uma razão óbvia (para ele), ao mesmo tempo que é rodeada pelos pais que julgam a sociedade a torto e a direito. Para além disso, tenta ao mesmo tempo esconder a gravidez e abortar (sem sucesso), pois o bebé é uma recordação do que aconteceu.

Não é fácil abordar um tema tão delicado, principalmente quando o sujeito-alvo é uma moça de 17 anos, mas este filme fá-lo de forma sensível e convida o espectador a participar na dor da rapariga, como se fossemos nós os seus únicos confidentes.


Embora com alguns "buracos" no argumento (como é que uma pessoa consegue esconder uma gravidez de TODOS, até dos próprios pais, mesmo vivendo com eles?) e com uma relação entre o inspector e a rapariga que é bastante inadequada (coughstalkercough), A Passagem da Noite é cinema português que vale a pena ver e que poucos conhecem. O filme conta ainda com Maria Rueff, Ana Bustorff e um pequeno cameo de Virgílio Castelo e Rogério Samora!