terça-feira, 29 de novembro de 2016

Hell or High Water - Westerns não são um período de tempo

Tinha lido uma crítica a propósito deste filme que o classificava como um neo-western Heist-crime. Uma coisa perigosa, os rótulos. Permitem uma explicação generalizada mas acabam por balizar os conteúdos. "Hell or High Water", realizado por David Mackenzie e escrito por Taylor Sheridan é de facto inserido neste pastiche de géneros mas por forçar novas definições revela-se puramente original, tal como Drive não é só um filme de acção ou Moon um de ficção-científica. 

A premissa de dois irmãos tornados assaltantes de bancos para salvar o seu rancho é um arquétipo primário, mas edifica dois temas mais profundos: a situação social actual em que a América das pradarias embate com a globalização e a relação entre dois melhores amigos, que por acaso são irmãos, numa jornada com consequências cada vez mais permanentes. 

Chris Pine consegue deixar o carisma básico do Herói para vestir uma personagem afectada, que não desiste de si por acreditar na geração dos seus filhos (o realizador dedicou os filme aos seus pais, que perdeu em 2015, durante a produção do filme). Ben Foster volta a reinventar-se no irmão mais velho, problemático e epicurista, entregando os melhores pedaços de diálogo de um guião candidato a melhor do ano nos Óscares de 2017 (se adivinhar, leram primeiro aqui).

O contexto da crise agrícola do sul dos Estados Unidos reflecte também o sangue quente e a insatisfação das personagens da região. Em qualquer estrada existem alfaias para venda e cartazes prometendo empréstimos razoáveis. Mesmo nas cenas mais carregadas de testosterona, um dos pontos altos do filme é iniciado num enquadramento que junta um cowboy e um carro desportivo a "bombar" heavy metal, vemos como é difuso o ponto de vista dos locais sobre a violência quando são explorados pelo "the man" (representado pelos bancos) com igual desrespeito.

As fascinantes políticas de armas da região do Texas conferem um carácter terrorífico ao filme. Os riscos são bem maiores quando qualquer cidadão possui um revólver e dispara sobre os assaltantes como parte do seu direito constitucional. 

Concluindo, e falaciando a minha própria análise com uma categorização estereotipada, o universo de Cormac McCarthy em No Country for Old Men é fielmente alargado num ambiente familiar e cumplíce, conduzido por uma ansiosa banda sonora de Nick Cave e Warren Ellis.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

3 nunca é demais - Animação Japonesa

O título deste segmento pode implicar uma leve derivação à temática das orgias. É propositado. Aliás, são tantas as minhas habilitações de "marketing-web" (com aspas e merdas) que ao colocar algo maroto no título posso receber algumas visualizações de curiosos em rambóias. 

Vamos? Vamos, é melhor para todos.
Quando comparado ao chamado cinema "live-action" o cinema de animação tende a ser colocado num patamar diferente. Quer a nível de temática, densidade da narrativa e Art Style (o desenho propriamente dito) as grandes companhias de animação americanas trabalham sempre para espectadores infantis (e eventualmente os seus pais) o que faz com que apesar de diferentes os seus filmes tenham atmosferas semelhantes, com poucos riscos narrativos e muita retribuição gratuita. 

A propósito da reforma de Hayao Miyazaki (não tão reforma) vale a pena olhar para um dos seus filmes mais emblemáticos e apresento mais dois, provavelmente menos conhecidos mas igualmente criativos e que transcendem a linguagem cinematográfica dos filmes de animação pela sua qualidade.

Mononoke Hime (1997)

Traduzido para Portugês como "A princesa Mononoke" (Mononoke é uma antiga palavra japonesa que pode significar "espírito" ou "monstro") é normalmente considerado a mais bem conseguida obra de Miyazaki. Situado num Japão Feudal onde humanos convivem com espíritos e deuses, sobre a forma de animais falantes, um jovem amaldiçoado vê-se envolvido numa guerra cada vez maior entre os habitantes da Aldeia do Ferro e os espíritos da floresta, representados por lobos. As suas convicções dividem-se quando conhece San, uma rapariga criada por lobos, e precisa de escolher entre cooperar com os humanos ou ajudar a carismática rapariga.


Akira (1988)
Num Japão pós-terceira guerra mundial, onde algumas pessoas nascem com o dom de possuir poderes psíquicos, um adolescente pertencente a um gang de motoqueiros, revela capacidades acima da média e é contido por uma agência governamental . Instável e perturbado, Kaneda perde o controlo dos seus poderes enquanto militares e membros do gang procuram a verdade sobre Akira, uma entidade misteriosa que consegue ultrapassar os poderes de Kaneda.

Ambientado num futuro Steampunk o filme combina cenas de acção super-dinâmicas (provavelmente dos mais bem animados filmes deste género) com cenas experimentais, mais adultas e que reforçam algumas questões éticas do filme. 


Perfect Blue (1997)

Um filme de referência para todos os fãs de filmes com narrativas densas e complexas e destes três aquele mais deslocado de um "universo maior do que a vida". 
Uma bem sucedida cantora pop japonesa (o material dos pesadelos para os japoneses) decide tornar-se actriz, procurando o reconhecimento e maturidade do público. A perseguição de um estranho fã obcecado e a exigência imposta em Mima quebra-lhe as realidades, ficando num limbo psicológico entre que o que faz por trabalho (uma violação encenada para uma série de televisão) e a realidade. 

Categorizado como terror mas nunca saindo da paranóia da actriz, o filme influenciou a forma de conceber thrillers psicológicos desde a sua saída.
                                                             (Perfect Blue e Black Swan)

sábado, 22 de outubro de 2016

Swiss Army Man - Poesia com Bufas


Para começar: esqueçam  Harry Potter... Prontos! Agora que isto está despachado, vamos ao que interessa!

Swiss Army Man, vencedor do prémio de melhor realização do festival de Sundance de 2016, é um filme diferente. Muito diferente. É divertido, é nojento, é negro, é perverso. É, no entanto, um dos filmes mais brilhantes dos últimos tempos.
A primeira longa metragem de Dan Kwan e Daniel Scheinert (quem?) apresenta-nos Hank (Paul Dano), um homem isolado numa ilha deserta, à beira de desistir e cometer suicídio. Quando está prestes a concretizar a auto-execução, dá à costa um corpo (Daniel Radcliffe). Após uma examinação, Hank conclui, com um flato largado pelo cadáver, que o jovem está mesmo morto. Desiludido, Hank regressa à sua ideia original de pôr termo à vida, mas não sem antes se aperceber que o corpo se consegue auto-impulsionar na água com a força dos gases (sim, o que acabaram de ler!). Hank monta-se no corpo e consegue sair da ilha e regressar à civilização, ou pelo menos perto dela. Depois de descobrir que o cadáver afinal fala e se chama Manny, Hank usa-o como um multi-ferramentas para regressar a casa.


Piadas sobre gases, erecções, pensamentos incestuosos, mamas e suicídio... Tudo isto faz parte de Swiss Army Man e funciona que é um mimo. No entanto, muito para além do divertimento, este filme é profundamente simbólico. Inicialmente Hank é uma pessoa isolada, sem ninguém que o ame ou que se importe com ele (pelo menos na sua opinião). Hank é a ilha deserta. Manny, por sua vez é inocente e ingénuo, não percebendo por exemplo, porque é que as pessoas não largam gases em público ou porque é que começa a ter uma erecção quando vê a imagem de uma mulher atraente. Hank é mais racional, Manny é mais impulsivo. Isto tem conotações fortes com os vários níveis de consciência. O cadáver pode ser entendido como o id (olá, psicologia!) de Hank, revelando os instintos básicos e falando livremente tudo o que o jovem tem medo de dizer ou de assumir. Quando Manny se lembra finalmente do nome da mulher por quem Hank está apaixonado, mesmo sem nunca a ter conhecido, significa que o mesmo se encontra enterrado no subconsciente de Hank, que o terá ouvido em alguma ocasião, mas não consegue subir à superfície da memória.


Há medida que o filme avança, a personagem de Paul Dano vai evoluindo e vai aprendendo a aceitar-se a si próprio. Quando no inicio é Hank que tem de transportar o corpo imóvel de Manny, pelo final do filme já estamos a assistir ao contrário. Hank aprende a fazer as pazes com o seu id, com os seus instintos e defeitos e o apogeu acontece quando Paul Dano e Daniel Radcliffe se beijam (no homo!) numa cena subaquática, saindo impulsionados da água pelas bufas de Manny (maybe homo!)!

Existem poucos filmes tão originais como Swiss Army Man e também como a sua banda sonora. Constituída quase exclusivamente de canções cantadas por Paul Dano e Daniel Radcliffe, a soundtrack contêm uma versão curta, mas deliciosa do clássico chunga "Cotton Eyed Joe", dos Rednex!

O filme conta também com Mary Elizabeth Winstead no papel do interesse amoroso de Hank.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

"Abre los Ojos", estiveste a dormir o tempo todo?


Corre o boato que depois de Tom cruise ver "Abre los Ojos" a primeira que coisa que fez, ao entrar no carro, foi pegar no telemóvel e começar a negociar a compra dos direitos do filme espanhol.
A verdade é que quatro anos depois saiu o remake americano realizado por Cameron Crowe e onde Tom Cruise não é só o protagonista mas também um dos produtores executivos. Esta história fui suficiente para me fazer ver o filme. Os dois aliás. Mas não falemos de remakes.

César é um jovem adulto com uma vida de causar inveja a qualquer amigo. Milionário devido à herança dos pais e com uma cara bonita, é conhecido por ser o mulherengo que nunca dorme duas vezes com a mesma mulher (basicamente eu). Depois de um aparatoso acidente de automóvel César vê-se permanentemente desfigurado, a sua face fica irreconhecível devido à violência do embate.


Pela primeira vez  César olha-se ao espelho e não gosta do que vê. O seu aspecto, que até aqui era o seu melhor trunfo e fonte do seu narcisismo era agora motivo de repulsa e que o faz transformar-se num exilado. A alegoria do príncipe encantado transformado em monstro ganha um novo twist. A problemática social que o filme evoca era tão adequada em 1997 como actualmente, num mundo predefinido a olhar para as aparências em primeiro lugar.

Na sua essência, um filme de mistério, tem a originalidade no conceito e a coragem de criar segmentos narrativos não-lineares (pensemos Lynch) que retratam a paranóia e a mente quebrada e que por fim presenteia o espectador com um dos melhores "MindFucks" dos últimos anos.