segunda-feira, 27 de julho de 2020

Fight Club (Clube de Combate) - A Renúncia do Alter-Ego

Em 1996, Fight Club, a primeira obra publicada do escritor Chuck Palahniuk, via a luz do dia, recebendo considerável atenção pelo estilo de escrita peculiar do autor e pelos tons negros de critica ao consumismo e ao machismo tóxico. Não tardaria a gerar interesse "hollywoodesco" e, em 1999, a versão cinematográfica foi lançada, tendo uma recepção morna por parte do público Norte Americano inicialmente, sendo mesmo ultrapassado, nesse ano, por 10 Coisas Que Odeio Em Ti, Ana e o Rei ou Gigolo Profissional (sim, Rob Schneider conseguiu superar Brad Pitt e Edward Norton juntos!). No entanto, após o lançamento no mercado do home cinema, o filme ganharia uma nova vida, atingido o estatuto de "obra de culto" e sendo hoje considerado, ainda que de forma bastante liberal, "o filme que definiu toda uma geração". Não foi!

Realizado por David Fincher e escrito por Jim Uhls (que após este argumento, foi um dos responsáveis por Jumper, vá-se lá saber como), Fight Club apresenta-nos um protagonista sem nome, que nós ficamos a conhecer como "Narrador" (Edward Norton), um homem com uma vida rotineira, preso a um trabalho que não o completa e obcecado por catálogos do IKEA, tendo como objectivo major a decoração do seu domicilio com as peças mais respeitáveis de mobiliário. A sofrer de insónias e depressão, o Narrador vai a grupos de interajuda, onde encontra a paz e o descanso que tanto almejava até Marla Singer (Helena Bonham Carter), uma mulher que não sofre de nenhuma maleita terminal, se intrometer nos mesmos grupos, reflectindo assim a sua farsa e fazendo com que o Narrador reverta o seu estado de paz interior. É nesta altura que ele conhece Tyler Durden (Brad Pitt), um fabricante de sabão que, depois de o introduzir a uma ideologia libertária e desprovida de bens materiais, o leva a iniciar uma luta entre os dois, formando assim um grupo secreto reservado a homens conhecido como "Clube de Combate".

Fight Club, tal como o livro em que é baseado, é uma negra critica à sociedade consumista e à dependência dos bens materiais ou, nas palavras de Tyler Durden: "As coisas que tu possuis, acabam por te possuir". É também uma critica ao machismo tóxico e ao anarquismo ideológico, mas relativamente a esses pontos, já lá chegarei.


SPOILER ALERT: Tendo um dos mais famosos e bem elaborados plot twists do cinema, é-nos revelado, perto do final, que o Narrador e Tyler Durden são a mesma pessoa, sendo que Tyler, fruto da imaginação do personagem de Edward Norton, assume o controlo, tornando-se na persona mais dominante e influente dos dois, sem que o Narrador tenha qualquer controlo sobre a sua dupla personalidade, pelos menos conscientemente.

Tyler é o completo oposto do Narrador: é extrovertido, desvaloriza a opinião que outras pessoas possam ter de si, é despegado de bens materiais, tem empregos temporários que servem para pagar as contas básicas (onde pelo meio urina em sopa ou insere frames de material pornográfico em películas de filmes familiares) e descreve como a grande crise desta geração o facto de estrem vivos.

A aparição de Tyler Durden surge como uma manifestação do id do Narrador. Tyler é livre em todos os aspectos que ele não é, mas, no seu íntimo, desejaria ser. Ainda que uma manifestação levada ao extremo. Esta revelação é pressagiada habilmente ao longo do primeiro acto do filme. Fruto da depressão e insónia, Tyler aparece 4 vezes ao Narrador, de cada vez, em 1 frame fugaz inserido no filme (semelhante ao que Tyler faz na sala de projecção), o que devia ser um momento de ligeira confusão para quem estivesse numa sala de cinema, em 1999, sem a capacidade de parar e fazer "rewind" para conferir o que aquilo foi (o Home Cinema veio estragar tudo)! Para além disso, por duas ocasiões, é possivel vislumbrar Tyler esparramado na tela antes da apresentação formal. Estas visões deixam de acontecer quando o Narrador encontra Paz interior e libertação através do choro e testemunho da dor alheia, mas regressam com a entrada de Marla em cena.

Com Fight Club, a figura de Tyler Durden ficou impressa na cultura popular como símbolo de liberação, masculinidade e anti-consumismo. Uma forma de heroi (ou anti-heroi) moderno. No entanto, Tyler acaba por ser o vilão da narrativa, mesmo que o espectador não se aperceba.



Fight Club cai numa sub-categoria de filmes que aborda o conceito de Alter-Ego. Tipicamente temos o personagem principal, cuja personalidade apresenta falhas (geralmente de acordo com o conceito socialmente aceitável), que podem incluir conformismo, falta de coragem, introversão, medo do confronto directo (entre muitas outras variáveis), podendo estas características serem resumidas no conceito do nosso personagem não estar a aproveitar a vida em pleno. O Alter-Ego surge geralmente em forma de dupla personalidade (ou, mais correctamente, Distúrbio de Identidade Dissociativa) - Fight Club, Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1931), Me, Myself and Irene (2000) (sim, o filme com Jim Carrey, com o conceito muito mal explorado) - ou de um factor externo que faz o personagem revelar o seu id - Spider Man 3 (2007), The Mask (1994) (sim, o filme com Jim Carrey, com o conceito muito melhor explorado). Geralmente esta manifestação de personalidade é apresentada como positiva inicialmente, mas com a revelação do lado negro que isso implica, a resolução caminha no sentido de suprimir (matar) o Alter-Ego, ficando o nosso herói com a personalidade melhorada, mas sem os efeitos nefastos daquela relação.

 Fight Club não é diferente. Tyler, que no início se apresenta como um tipo que vive a vida no momento, sem se importar com estatutos, com uma filosofia de vida liberal, acaba por se revelar um anarquista radical. O sentido mais extremo do conceito da libertação através da destruição do capitalismo. Tyler promove actos de vandalismo que, embora em pequena escala inicialmente, se transformam em actos de terrorismo organizado. Ao mesmo tempo, a sua ideologia de libertar as pessoas da tirania consumista da sociedade e dos seus empregos sem sentido, transforma-se numa espécie de regime totalitário com a criação do Projecto Destruição, onde os militantes - macacos espaciais - são submetidos a uma lavagem cerebral, são desprovidos de nomes e lhes é aplicada a doutrina "Durdeana" através de um megafone enquanto trabalham. Os seus ideais de anti-capitalismo acabam por provocar milhões de dólares em prejuízos, a morte de um dos macacos espaciais e um plano para apagar o registo de dívidas (destruir os edifícios-sede das companhias de cartões de crédito) bastante questionável, gerando uma potencial crise financeira mundial e mortes, fruto da queda dos edifícios (o 11 de Setembro estava a 2 anos de despertar consciências para a física da derrocada imobiliária).


É neste contexto que vemos o machismo tóxico, como forma dominadora e destrutiva (o clube é só para homens). Curiosamente, este assunto seria igualmente abordado no ano seguinte em American Psycho, um filme que também aborda o conceito de Alter-Ego, ainda que de uma forma mais subtil, com a construção de uma crítica ácida ao consumismo, corporativismo e a despersonalização do elemento humano, mas desta vez ao lado de um personagem de "colarinho branco".

Como tal, o Alter-Ego tem de ser eliminado. A morte de Tyler (através de um método bastante questionável) representa a castração dos elementos negros do id e a assimilação de características mais socialmente positivamente libertadoras por parte do Narrador. No entanto, até o final do filme tende para o tradicionalismo, com o Narrador e Marla a ficarem aparentemente romanticamente ligados, quando, enquanto Tyler, a sua relação era apenas de coiso!

 O filme conta ainda com Meat Loaf e Jared Leto (que também participaria em American Psycho!).