Não se pode falar em femme fatale sem antes perceber o que é o film noir. Então comecemos por aí!
O film noir é tido como um
género cinematográfico, embora muitas pessoas não estejam de acordo. No entanto,
este género tem provas dadas de que não é uma mera atmosfera que o espectador
vê e sente num filme. É muito mais do que isso, pois possui as suas próprias
características que são, facilmente, reconhecidas e das quais irei falar posteriormente.
O film noir surge durante a II Guerra Mundial - um período
negro da história da humanidade. Daqui nasce o espírito deste género: a
escuridão, as sombras, o pessimismo, a tristeza e a incerteza. Surge nos Estados Unidos, influenciado pelo
expressionismo alemão e pelo realismo poético francês, assim como, por livros escritos na altura da Grande
Depressão e por filmes de gangsters e
de crimes. Depois do início da Guerra Fria, o film noir entrou em decadência, em grande parte devido ao facto de
aquela altura negra e umbrosa, estar-se a desvanecer, entrando-se assim, numa
fase mais optimista e jovial. No entanto, não se extinguiu por completo. Hoje
em dia, há muitos filmes com uma estrutura semelhante à deste género.
Geralmente, estes filmes são designados por filmes neo-noir. “Chinatown, “Instinto Fatal” e “Memento”, são alguns exemplares
destes novos filmes, onde podemos ver aspectos comuns ao film noir. Se examinarmos “Instinto Fatal” é simples
de averiguar que a personagem feminina identifica-se com uma femme fatale. Ela é atraente e
manipuladora. Mas as semelhanças deste filme com o género não acabam por aqui.
Temos, ainda, a existência de um crime e de um detective que detém um passado refutável.
O período clássico do film noir inicia-se, então, em 1941, com
o filme Maltese Falcon (embora, haja
quem aluda ao filme Stranger on the Third
Floor, de 1940, como a primeira obra deste género), já no período mais
intenso da guerra. E termina, em 1958, com o filme Touch of Evil, aquando da Guerra Fria. Tudo isto vai culminar, na
atmosfera destes filmes: o derrotismo, o clima de angústia e inquietação e tudo
o que aponte para um lado obscuro da vida e até da própria mente. Curiosamente,
o termo film noir só começou a ser
utilizado algum tempo depois deste género cinematográfico ter aparecido, pela crítica
francesa. Durante este período, em que o film noir vivia a sua era de ouro,
surgiram muitas obras de grande valor como, por exemplo, Double Indemnity, Out of the
Past, Naked City, The Postman Always Rings Twice, Big Sleep e Leave Her to Heaven.
Como já disse
inicialmente, o film noir, possui
características próprias. Tematicamente, fala, na sua maioria, de crimes,
traições, tragédias, manipulação, vingança e, resumindo, da
ambiguidade moral daqueles que fazem parte da narrativa. É comum encontrarmos um detective à procura de respostas para um crime, com um
cigarro numa mão e um copo na outra. Este detective, ao longo do caminho, é
levado a entrar em vias mais tenebrosas e sinistras, muito pouco íntegras e
honestas. Estilisticamente, podem ser referidos alguns aspectos
facilmente atingíveis neste tipo de filmes com a fotografia ser
a preto e branco, possuir um contraste abundante, ter uma iluminação especial
(tanto em cenários de interior, como de exterior), que nos dá uma sensação de
penumbra, e possuir muitas sombras. Vemos muitas vezes, principalmente em
cenários exteriores, névoas que ajudam a criar o ambiente tisnado do filme.
Socorrerem-se, também, do uso de ângulos de câmara fora do comum como, por
exemplo os dutch angles, que
normalmente, pretendem transmitir tensão ou quando a personagem tem algum tipo
de perturbação mental. Outra particularidade é o som. Um elemento que abarca importância em qualquer filme e, consequentemente, também no film noir. Usualmente ouvem-se os sons
da cidade: os comboios, os carros a travar, as portas e os sapatos a bater no
chão. Tudo isto, mais uma vez, para criar a atmosfera do filme. Devemos ainda, referir os aspectos narrativos. É muito comum a
personagem masculina nos contar, em voice-off, aquilo que se passou consigo, um
tanto ou quanto arrependido, mostrando-nos o seu sentimento de culpa e auto-analisando-se. Assim, vemos também o recurso a analepse (flashback), que é
muito frequente no film noir. Porém, há uma outra característica importante
neste género, que algumas vezes é deixada de parte: as personagens.
No film noir encontramos tipos de personagens que, anteriormente, não
existiam ou que não estavam tão bem definidas como se encontram neste género. O
protagonista deixa de ser o herói que tudo faz para salvar a sua donzela,
deixando de ser a imagem perfeita que a sociedade procurava. Passa, então, a
ser um homem dúbio, que não sabe se há-de prosseguir de acordo com o bem ou se
envereda pelo lado mau. Esta última hipótese é a mais comum, senão mesmo a
única e, raramente, ele segue o caminho do bem, pelo menos de uma forma transparente.
Ele acaba sempre por valer-se de actos contestáveis. Assim, o anti-herói vai,
ao longo do filme, passar por situações que vão exacerbar a sua solidão e as
suas atitudes pouco correctas.
Depois temos a femme fatale, que é a personagem
feminina da trama. Esta é uma mulher belíssima e sedutora, que vemos sempre
admiravelmente vestida e arranjada, mas é, em igual escala, muito fatal, tal
como percebemos pelo seu nome. Esta femme
vai levar o anti-herói a sua destruição, mas normalmente, acaba por cair na sua
própria teia e é, também, arruinada. Poderíamos dizer que não há muito mais a contar sobre a femme fatale... No entanto, há
uma característica que é muito importante referir. Esta
particularidade está relacionada com a evolução do papel da mulher na sociedade.
Desde que há memória
que a mulher era obrigada a diminuir-se perante os homens. Nos primórdios da
civilização fazia-o pois necessitava da sua protecção. Isto foi continuando a
acontecer de outras maneiras, fazendo com que o homem acabasse por adquirir um
certo poder sobre ela. No entanto, os tempos mudam e o papel da mulher foi
sofrendo avanços.
Na altura em que surge
o film noir, a mulher começa a
cultivar cada vez mais a sua emancipação, que já tinha-se iniciado na I Guerra
Mundial. Sem homens para trabalhar, pois estavam na linha de batalha, as mulheres
acabaram por ocupar os seus postos de trabalho, ganhando independência
financeira, o que lhes concedeu uma liberdade de condutas que até então, não
tinham.
As femmes fatales representam então essas mulheres, que surgem agora
como o sexo forte, independentes, sem necessidade de um homem para as
sustentar. Muitas vezes, a femme fatale,
no film noir, é profundamente mais do
que uma mera predadora sexual, acabando por ser mais agressiva que os próprios
homens, sendo ela a manipuladora. Ela tanto pode ter um batom na mão, como no
momento a seguir ter uma arma. O film
noir exibe, também, um outro direito que a mulher adquiriu. Esse direito
foi precisamente, poder aceitar o seu lado sexual, algo que até então era
reprimido. As femme fatales possuem uma carga erótica
muito elevada. Isto era algo em que as mulheres, na altura, não detinham
controlo. Até se casarem eram propriedade do pai, depois do marido, e tinham
que lhes obedecer cegamente. Neste século, todas estas regras impostas pela
sociedade, acabaram por se alterar. Os filmes deste género vieram demonstrar
isso mesmo e a femme fatale
personificou os desejos das mulheres. Todavia personificou-os através de uma
visão masculina, fazendo parecer que os objectivos feministas da altura eram
meros devaneios de mulher e que o destino se encarregaria de lhes por um fim
cruel e, de certa forma, vingativo, pois se analisarmos bem, a femme fatale também tem,
maioritariamente, um final trágico. Esse fim dado à
personagem deve-se a um tentativa masculina de continuar a controlar as mulheres, pois este novo papel não era bem aceite na sociedade, e
de arranjar alguma coisa que lhes confortasse e acalmasse os seus receios.
Quando o film noir entrou em decadência, este
modelo de mulher acabou por ser deslocado para outros géneros, daí se nos questionares se existe femme
fatale fora do film noir podemos entender que sim. Actualmente,
já não se pode falar de film noir per
si. Há sempre uma mistura de géneros. Analisando, por exemplo, o caso dos
filmes do agente secreto James Bond, vemos
que as Bond Girls, podem ser consideradas
como femmes fatales, mesmo que um
pouco diferentes das clássicas como, Lauren Bacall e Lana Turner nos habituaram.
No entanto, estes filmes são mais recentes e inserem-se nos filmes de acção ou
até thrillers e, não tanto, nos film noir.
Mesmo os aspectos técnicos possuem diferenças, desde a iluminação à cor da
fotografia. Porém, acho que dá para perceber as suas semelhanças que, embora
não sendo estilísticas, são narrativas e tematicamente. E a femme fatale é das características que
conseguimos relacionar com mais facilidade. Elas continuam a existir ainda
hoje. São mulheres como uma beleza arrasadora que controlam cada vez mais a sua
própria vida, sem prestarem justificações a mais ninguém. E, presentemente, já
não têm finais trágicos com tanta frequência, mas destroem, facilmente, quem se
coloca no seu caminho. Isto demonstra que a mulher assume, gradualmente, as
rédeas de toda a sua existência – corpo e alma.
Resumindo, seja qual for a opinião
do espectador relativamente ao film noir,
estes exploram o lado recôndito das pessoas, aquilo que temos guardado dentro
de nós e nos esforçamos compulsivamente para controlar, fazendo jus ao que o seu
nome significa (literalmente, filme preto). E a femme
fatale é muito mais do que uma simples personagem feminina. Esta engloba
uma significação muito importante para todas as mulheres, pois representa a
emancipação e libertação feminina da altura e o esforço de uma sociedade para que tal
lhes seja interdito. Com o avançar do tempo, este modelo de mulher fatal foi se
adaptando e existe, contemporaneamente, fora do film noir, mostrando que os tempos em que a mulher se submetia a
tudo o que lhe era exigido acabaram.