sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Femme Fatale no Film Noir


Maltese Falcon (1941)

Não se pode falar em femme fatale sem antes perceber o que é o film noir. Então comecemos por aí!

O film noir é tido como um género cinematográfico, embora muitas pessoas não estejam de acordo. No entanto, este género tem provas dadas de que não é uma mera atmosfera que o espectador vê e sente num filme. É muito mais do que isso, pois possui as suas próprias características que são, facilmente, reconhecidas e das quais irei falar posteriormente. 

O film noir surge durante a II Guerra Mundial - um período negro da história da humanidade. Daqui nasce o espírito deste género: a escuridão, as sombras, o pessimismo, a tristeza e a incerteza. Surge nos Estados Unidos, influenciado pelo expressionismo alemão e pelo realismo poético francês, assim como, por livros escritos na altura da Grande Depressão e por filmes de gangsters e de crimes. Depois do início da Guerra Fria, o film noir entrou em decadência, em grande parte devido ao facto de aquela altura negra e umbrosa, estar-se a desvanecer, entrando-se assim, numa fase mais optimista e jovial. No entanto, não se extinguiu por completo. Hoje em dia, há muitos filmes com uma estrutura semelhante à deste género. Geralmente, estes filmes são designados por filmes neo-noir. “Chinatown, “Instinto Fatal” e “Memento”, são alguns exemplares destes novos filmes, onde podemos ver aspectos comuns ao film noir. Se examinarmos “Instinto Fatal” é simples de averiguar que a personagem feminina identifica-se com uma femme fatale. Ela é atraente e manipuladora. Mas as semelhanças deste filme com o género não acabam por aqui. Temos, ainda, a existência de um crime e de um detective que detém um passado refutável.

O período clássico do film noir inicia-se, então, em 1941, com o filme Maltese Falcon (embora, haja quem aluda ao filme Stranger on the Third Floor, de 1940, como a primeira obra deste género), já no período mais intenso da guerra. E termina, em 1958, com o filme Touch of Evil, aquando da Guerra Fria. Tudo isto vai culminar, na atmosfera destes filmes: o derrotismo, o clima de angústia e inquietação e tudo o que aponte para um lado obscuro da vida e até da própria mente. Curiosamente, o termo film noir só começou a ser utilizado algum tempo depois deste género cinematográfico ter aparecido, pela crítica francesa. Durante este período, em que o film noir vivia a sua era de ouro, surgiram muitas obras de grande valor como, por exemplo, Double Indemnity, Out of the Past, Naked City, The Postman Always Rings Twice, Big Sleep e Leave Her to Heaven.

Como já disse inicialmente, o film noir, possui características próprias. Tematicamente, fala, na sua maioria, de crimes, traições, tragédias, manipulação, vingança e, resumindo, da ambiguidade moral daqueles que fazem parte da narrativa. É comum encontrarmos um detective à procura de respostas para um crime, com um cigarro numa mão e um copo na outra. Este detective, ao longo do caminho, é levado a entrar em vias mais tenebrosas e sinistras, muito pouco íntegras e honestas. Estilisticamente, podem ser referidos alguns aspectos facilmente atingíveis neste tipo de filmes com a fotografia ser a preto e branco, possuir um contraste abundante, ter uma iluminação especial (tanto em cenários de interior, como de exterior), que nos dá uma sensação de penumbra, e possuir muitas sombras. Vemos muitas vezes, principalmente em cenários exteriores, névoas que ajudam a criar o ambiente tisnado do filme. Socorrerem-se, também, do uso de ângulos de câmara fora do comum como, por exemplo os dutch angles, que normalmente, pretendem transmitir tensão ou quando a personagem tem algum tipo de perturbação mental. Outra particularidade é o som. Um elemento que abarca importância em qualquer filme e, consequentemente, também no film noir. Usualmente ouvem-se os sons da cidade: os comboios, os carros a travar, as portas e os sapatos a bater no chão. Tudo isto, mais uma vez, para criar a atmosfera do filme. Devemos ainda, referir os aspectos narrativos. É muito comum a personagem masculina nos contar, em voice-off, aquilo que se passou consigo, um tanto ou quanto arrependido, mostrando-nos o seu sentimento de culpa e auto-analisando-se. Assim, vemos também o recurso a analepse (flashback), que é muito frequente no film noir. Porém, há uma outra característica importante neste género, que algumas vezes é deixada de parte: as personagens.

Touch of Evil (1958)

No film noir encontramos tipos de personagens que, anteriormente, não existiam ou que não estavam tão bem definidas como se encontram neste género. O protagonista deixa de ser o herói que tudo faz para salvar a sua donzela, deixando de ser a imagem perfeita que a sociedade procurava. Passa, então, a ser um homem dúbio, que não sabe se há-de prosseguir de acordo com o bem ou se envereda pelo lado mau. Esta última hipótese é a mais comum, senão mesmo a única e, raramente, ele segue o caminho do bem, pelo menos de uma forma transparente. Ele acaba sempre por valer-se de actos contestáveis. Assim, o anti-herói vai, ao longo do filme, passar por situações que vão exacerbar a sua solidão e as suas atitudes pouco correctas.

Depois temos a femme fatale, que é a personagem feminina da trama. Esta é uma mulher belíssima e sedutora, que vemos sempre admiravelmente vestida e arranjada, mas é, em igual escala, muito fatal, tal como percebemos pelo seu nome. Esta femme vai levar o anti-herói a sua destruição, mas normalmente, acaba por cair na sua própria teia e é, também, arruinada. Poderíamos dizer que não há muito mais a contar sobre a femme fatale... No entanto, há uma característica que é muito importante referir. Esta particularidade está relacionada com a evolução do papel da mulher na sociedade.

Desde que há memória que a mulher era obrigada a diminuir-se perante os homens. Nos primórdios da civilização fazia-o pois necessitava da sua protecção. Isto foi continuando a acontecer de outras maneiras, fazendo com que o homem acabasse por adquirir um certo poder sobre ela. No entanto, os tempos mudam e o papel da mulher foi sofrendo avanços.

Na altura em que surge o film noir, a mulher começa a cultivar cada vez mais a sua emancipação, que já tinha-se iniciado na I Guerra Mundial. Sem homens para trabalhar, pois estavam na linha de batalha, as mulheres acabaram por ocupar os seus postos de trabalho, ganhando independência financeira, o que lhes concedeu uma liberdade de condutas que até então, não tinham.

As femmes fatales representam então essas mulheres, que surgem agora como o sexo forte, independentes, sem necessidade de um homem para as sustentar. Muitas vezes, a femme fatale, no film noir, é profundamente mais do que uma mera predadora sexual, acabando por ser mais agressiva que os próprios homens, sendo ela a manipuladora. Ela tanto pode ter um batom na mão, como no momento a seguir ter uma arma. O film noir exibe, também, um outro direito que a mulher adquiriu. Esse direito foi precisamente, poder aceitar o seu lado sexual, algo que até então era reprimido. As femme fatales possuem uma carga erótica muito elevada. Isto era algo em que as mulheres, na altura, não detinham controlo. Até se casarem eram propriedade do pai, depois do marido, e tinham que lhes obedecer cegamente. Neste século, todas estas regras impostas pela sociedade, acabaram por se alterar. Os filmes deste género vieram demonstrar isso mesmo e a femme fatale personificou os desejos das mulheres. Todavia personificou-os através de uma visão masculina, fazendo parecer que os objectivos feministas da altura eram meros devaneios de mulher e que o destino se encarregaria de lhes por um fim cruel e, de certa forma, vingativo, pois se analisarmos bem, a femme fatale também tem, maioritariamente, um final trágico. Esse fim dado à personagem deve-se a um tentativa masculina de continuar a controlar as mulheres, pois este novo papel não era bem aceite na sociedade, e de arranjar alguma coisa que lhes confortasse e acalmasse os seus receios.

Quando o film noir entrou em decadência, este modelo de mulher acabou por ser deslocado para outros géneros, daí se nos questionares se existe femme fatale fora do film noir podemos entender que sim. Actualmente, já não se pode falar de film noir per si. Há sempre uma mistura de géneros. Analisando, por exemplo, o caso dos filmes do agente secreto James Bond, vemos que as Bond Girls, podem ser consideradas como femmes fatales, mesmo que um pouco diferentes das clássicas como, Lauren Bacall e Lana Turner nos habituaram. No entanto, estes filmes são mais recentes e inserem-se nos filmes de acção ou até thrillers e, não tanto, nos film noir. Mesmo os aspectos técnicos possuem diferenças, desde a iluminação à cor da fotografia. Porém, acho que dá para perceber as suas semelhanças que, embora não sendo estilísticas, são narrativas e tematicamente. E a femme fatale é das características que conseguimos relacionar com mais facilidade. Elas continuam a existir ainda hoje. São mulheres como uma beleza arrasadora que controlam cada vez mais a sua própria vida, sem prestarem justificações a mais ninguém. E, presentemente, já não têm finais trágicos com tanta frequência, mas destroem, facilmente, quem se coloca no seu caminho. Isto demonstra que a mulher assume, gradualmente, as rédeas de toda a sua existência – corpo e alma.

The Postman Always Rings Twice (1946)

Resumindo, seja qual for a opinião do espectador relativamente ao film noir, estes exploram o lado recôndito das pessoas, aquilo que temos guardado dentro de nós e nos esforçamos compulsivamente para controlar, fazendo jus ao que o seu nome significa (literalmente, filme preto). E a femme fatale é muito mais do que uma simples personagem feminina. Esta engloba uma significação muito importante para todas as mulheres, pois representa a emancipação e libertação feminina da altura e o esforço de uma sociedade para que tal lhes seja interdito. Com o avançar do tempo, este modelo de mulher fatal foi se adaptando e existe, contemporaneamente, fora do film noir, mostrando que os tempos em que a mulher se submetia a tudo o que lhe era exigido acabaram.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Mignonnes / Cuties (Mignonnes: Primeiros Passos) - Desconstrução de uma Polémica

Esta análise divide-se em duas partes. A primeira é relativa à polémica criada com a divulgação e estreia do filme “Cuties” na Netflix e implicações morais. A segunda é relativa somente aos méritos artísticos da obra.




 1.   a) A Polémica

A 9 de Setembro estreou na Netflix (excepto em França) o filme Mignonnes (Cuties é o título internacional), uma obra francesa, dirigida e escrita por Maïmouna Doucouré, uma realizadora de origem senegalesa. Mignonnes tinha tido estreia oficial no festival de Sundance, o que tinha valido a Doucouré um prémio de realização. Após a aquisição de direitos por parte da Netflix, a empresa de streaming apostou numa promoção virada para o público Norte-Americano, que se revelou desastrosa. O poster original seria trocado por um mais polémico, em que 4 das pré-adolescentes apareciam em poses provocadoras, e com roupas bastante justas e curtas (alusão ao final do 2º acto do filme, onde as jovens participam num concurso de dança). Isto, associado à sinopse criada pela própria Netflix – Amy, 11 anos, fica fascinada com uma trupe de dança de twerk. Com esperanças de fazer parte do grupo, ela começa a explorar a sua feminilidade, desafiando as tradições da sua família – e a um trailer bastante redutor, fez com que se criasse uma onda de indignação, acusando a Netflix de promover a hipersexualização de crianças, e que o filme teria consequentemente um sub-tema de pro-pedofilia. A Netflix pediu oficialmente desculpa, não pelo filme, mas pela forma de promoção do mesmo.

Após a estreia, as vozes contra fizeram-se soar mais alto, afirmando até que o filme seria ainda mais obsceno e imoral do que seria de esperar, recorrendo à exploração do corpo feminino infantil. No Youtube, dezenas de vídeos de criadores, maioritariamente não ligados a crítica ou análise fílmica, vieram denunciar o filme, pedindo mesmo o cancelamento deste ou da própria Netflix ou, ainda de forma mais extrema, que quem apoiasse o filme fosse alvo de investigações pelo FBI. Nos EUA, tanto do lado Republicano como do Democrático, investigações foram propostas para averiguar se a Netflix teria infringido leis sobre a “produção e distribuição de pornografia infantil” ou sobre o ambiente de produção, onde pudesse ter ocorrido alguma forma de abuso infantil.

Isto tudo, aparentemente sem levarem em consideração que Mignonnes é uma produção Francesa, sem a mão de Hollywood/EUA, sendo a Netflix responsável somente pela aquisição de direitos, promoção e distribuição do filme a nível internacional! Portanto, se alguma investigação tivesse de ser proposta, talvez tivesse de partir das autoridades Francesas? Isto sou eu a…

Apesar da recepção largamente negativa do público – 2.1 no imdb e 11% no Rotten Tomatoes - o filme teve uma recepção maioritariamente favorável por parte da crítica - pontuação de 67, no Metascore e 91% no Rotten Tomatoes (valores à data da publicação deste texto). De referir ainda que o filme esteve em competição no Festival Internacional de Berlin.

b) Uma análise concertada

Conceitos a reter: Mignonnes tem, inequivocamente, exploração do corpo feminino de pré-adolescentes, tem hipersexualização infantil e é um filme extremamente desconfortável de assistir (a não ser que tenhas um Jeffrey Epstein dentro de ti – sem segundo sentido!). No entanto, esta exploração não é algo gratuito ou usado como forma de glorificação. Pelo contrário. O desconforto causado é uma forma de alertar progenitores para olharem pelas suas crianças e simplesmente não as negligenciar. É um alerta para o difícil mundo tecnológico que enfrentamos, com as redes sociais a promoverem uma falsa sensação de pertença e felicidade, com questões de saúde mental prontas a surgir a qualquer momento, fruto de pressão de pares e integração social.

Alguns dos detratores de Mignnones reconhecem a mensagem que o filme quer passar, mas criticam a parte da execução, apontando o dedo à utilização de crianças com idade semelhante à das personagens que encarnam, com alusão a possíveis consequências a nível psicológico nas menores. Olhando para as questões morais a nível de produção do filme, a realizadora afirmou, numa entrevista a Zora (uma publicação online que aborda questões de mulheres de cor) que trabalhou extensivamente com um psicólogo infantil durante e após a produção do filme para garantir que as jovens não sofriam consequências negativas com a divulgação e reconhecimento público, para além da presença constante dos pais.

Doucouré afirmou que o conteúdo mais explícito do filme resulta da sua experiência ao assistir a um grupo de dançarinas com idades semelhantes às jovens potagonistas, a exibirem-se de forma comparável a um dos grupos que aparece no filme. Após pesquisar e falar com pré-adolescentes, reparou que o conteúdo das redes sociais e a promoção da hipersexualização do corpo feminino em celebridades tinham grande influência na forma como as jovens se viam e agiam. Sexualidade significava popularidade. O conteúdo do filme é transponível para a vida real. Decidir negar o conteúdo do filme é decidir negar a realidade.

A polémica do filme ganhou dimensões políticas, com conservadores armados em críticos cinematográficos a acusarem a esquerda e os liberais de Hollywood de promoverem a pedofilia, e os defensores do filme a atribuírem as cotações negativas da obra e falta de visão crítica ao pessoal de direita, fomentando narrativas anti-Trump (???) e denunciando uma agenda anti-feminista e racista(???). Isto é extremamente simplista, redutor…e estúpido, vá… uma vez que a resposta pública ao filme foi avassaladoramente negativa, indicando que de todos os lados, as pessoas ficaram revoltadas. A resposta de repulsa pela hipersexualização infantil é um bom sinal, mas a mensagem terá passado completamente ao lado da audiência, situação promovida em parte por uma campanha de divulgação totalmente desnorteada por parte da Netflix, e também pelos acontecimentos relativamente recentes com o caso Jeffrey Epstein (com algumas estrelas de Hollywood e políticas associadas ao magnata), servindo de combustível para esta associação com o mundo cinematográfico Norte-Americano. No entanto, é algo estranho pedir ativamente o cancelamento do filme ou da Netflix, quando há obras na mesma plataforma muito mais ofensivas e de qualidade inferior, como 365 Dias ou Dear White People (Uiii… racismo a esta hora? Atão?) e ninguém pede para desaparecerem.

Convido, para uma melhor compreensão da mensagem do filme, uma análise de um duo de “youtubers” – Aba & Preach - que, embora não se dediquem à análise cinematográfica, conseguem dissecar o filme de forma moderada e imparcial, sem o estigma “snob” ou liberal potencialmente associado a críticos de cinema. When I watched this movie, I did not leave it thinking “Oh! I can’t wait to watch 11 years old to do that again!”. I left it thinking “When I raise my kids, I don’t think I ever want them to join a dance troup!” - Aba. Podem ver aqui.

Mignonnes será o tipo de filme que vai gerar polémica no momento de estreia, mas no futuro se tornará uma obra essencial, como Peeping Tom (1960), Laranja Mecânica (1971), ou The Room (2003)...

Para finalizar, referir que no filme Léon (1994), Natalie Portman teria 12 anos durante a produção, com uma tensão sexual constante entre Portman e Jean Reno, que teria 44 anos na altura, com a personagem de Portman a apaixonar-se pela de Reno e a tentar suicídio com um revolver (só para fazer referência a um filme com conteúdo mais pesado, que também terá deixado alguns críticos desconfortáveis).


2.   O filme enquanto obra cinematográfica

Mignonnes, primeira longa metragem da realizadora franco-senegaleza Maïmouna Doucouré, surge após uma estreia auspiciosa no festival de Sundance no início de 2020, onde recebeu um prémio pela sua realização. Com estreia mundial na plataforma de streaming Netflix, o filme recebeu distribuição em salas de cinema domésticas.

Mignonnes conta a história de Amy, uma jovem de 11 anos, de origem senegalesa que vive em França, numa família muçulmana. Após atender a um serviço religioso, Amy dá de caras com Angelica, uma menina da sua idade que, ao tratar da roupa na lavandaria, dança ao som de Raegatton e engoma (???) o seu cabelo com o ferro. Curiosa pela sua nova descoberta e para se integrar na sua nova escola, Amy tenta travar amizade com Angelica e o seu grupo de amigas – Coumba, Jess e Yamine - que treinam frequentemente para um concurso de dança, inspiradas por uma troupe de raparigas com algum sucesso na internet, também da sua escola. Pelo caminho, Amy é confrontada com o desespero da mãe, que vê de repente o marido arranjar outra mulher para casar, tendo de manter uma felicidade de fachada, para cumprir com as tradições.

Tecnicamente, Mignonnes é uma obra bastante cuidada, com uma realização sólida e um trabalho de fotografia simples, mas eficaz. Com um grupo de jovens recém-chegadas ao cinema, Doucouré consegue um ambiente social, familiar e escolar bastante credível, com interacções naturais e fluentes (com uma ou outra fala mais artificial), que confere verosimilhança ao filme.




A realizadora, usando o desejo de reconhecimento e aceitação social das personagens, recorre a imagens fortes com o uso do corpo infantil como alerta para a realidade actual. As jovens interpretam danças provocadoras, vestindo-se de forma adulta, porque ainda não têm compreensão do que aquilo tudo significa. As suas acções são fruto de toda a sexualização feminina online, a que todos podem ter acesso, crianças e pré-adolescentes incluídos, com uma facilidade assustadora. São sequências profundamente desconfortáveis, mas é esse mesmo o objectivo. A certa altura, existe uma cena em que o grupo de jovens dança para a câmara, em jeito de videoclip, com uma persistência em planos de pormenor dos rabos das crianças. Essa cena é dirigida à audiência, desafiando assim a aprovação do espectador, na transposição de uma situação semelhante para o mundo real.

Mignonnes é um filme que desafia certas tradições mas é, ao mesmo tempo, um alerta para a perda de valores familiares que faz com que os jovens entrem num mundo para o qual podem ainda não estar preparados. As tradições da família de Amy, demonstram opressão feminina, com foco na submissão ao marido e a aceitação por parte da mulher da bigamia do esposo, mesmo que isso lhe traga infelicidade. É esse o motor da revolta de Amy. No entanto, os comportamentos das jovens, a sua forma de vestir, o seu desejo por popularidade e a sua ingenuidade pela sua própria hiper-sexualização são fruto, por um lado, de um acesso facilitado a redes socais e vídeos onde se promove e celebra o corpo e curvas femininas, e por outro, uma negligência familiar que muitas vezes usa as tecnologias como baby-sitter. Isso é especialmente notável quando as crianças estão no quarto de Yasmine com um laptop a comunicarem com um rapaz mais velho, sem os adultos se aperceberem.

É também uma reflexão sobre como a alienação familiar pode marginalizar crianças, com Angelica a revelar a Amy que a família sempre a criticou e nunca lhe reconheceu valor, buscando aprovação social no exterior do lar. O filme aborda a necessidade de aceitação e pressão por parte de pares e tribalismo, com Amy a fazer de tudo para ser integrada no grupo, vestindo-se de forma semelhante, aprendendo os movimentos de dança (e introduzindo o “twerk” à mistura!) e aproveitando o lugar deixado por Yasmine quando esta é excluída pelas amigas. É através das redes sociais que as jovens navegam no mundo da popularidade, esperando “likes” pelas suas fotos e vídeos, como forma de felicidade momentânea, trivializando as amizades e descurando a (de)pressão social do mundo real.




Há, no entanto, uma desconexão, ainda que não permanente, por parte do público em relação a Amy. Fruto da sua revolta contra a opressão, a jovem começa uma demanda de rebeldia sociopática que inclui roubar dinheiro em casa para ir às compras com as amigas, ignorar a mãe quando ela colapsa no chão da sala ou quase afogar Yasmine, na sua ânsia de participar no concurso de dança. Embora não totalmente reprovável, parece não haver uma justificação empática para as suas acções, se excluirmos precisamente a revolta familiar.

O final, ainda que algo abrupto (o 3º acto demora somente 5 minutos), põe Amy numa situação reconciliadora com as suas origens, abrindo à jovem um caminho onde a tradição e a modernidade podem andar de mãos dadas, mesmo que isso implique quebrar algumas normas. O plano final de Amy a saltar à corda na rua, remete-nos para a ideia de que a jovem ainda tem tempo para crescer e que o seu futuro é cheio de possibilidades.

Mignonnes é uma obra provocante, que alerta para uma situação à vista de todos, mas que normalmente escolhemos ignorar. Um dos filmes mais importantes do ano.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Fight Club (Clube de Combate) - A Renúncia do Alter-Ego

Em 1996, Fight Club, a primeira obra publicada do escritor Chuck Palahniuk, via a luz do dia, recebendo considerável atenção pelo estilo de escrita peculiar do autor e pelos tons negros de critica ao consumismo e ao machismo tóxico. Não tardaria a gerar interesse "hollywoodesco" e, em 1999, a versão cinematográfica foi lançada, tendo uma recepção morna por parte do público Norte Americano inicialmente, sendo mesmo ultrapassado, nesse ano, por 10 Coisas Que Odeio Em Ti, Ana e o Rei ou Gigolo Profissional (sim, Rob Schneider conseguiu superar Brad Pitt e Edward Norton juntos!). No entanto, após o lançamento no mercado do home cinema, o filme ganharia uma nova vida, atingido o estatuto de "obra de culto" e sendo hoje considerado, ainda que de forma bastante liberal, "o filme que definiu toda uma geração". Não foi!

Realizado por David Fincher e escrito por Jim Uhls (que após este argumento, foi um dos responsáveis por Jumper, vá-se lá saber como), Fight Club apresenta-nos um protagonista sem nome, que nós ficamos a conhecer como "Narrador" (Edward Norton), um homem com uma vida rotineira, preso a um trabalho que não o completa e obcecado por catálogos do IKEA, tendo como objectivo major a decoração do seu domicilio com as peças mais respeitáveis de mobiliário. A sofrer de insónias e depressão, o Narrador vai a grupos de interajuda, onde encontra a paz e o descanso que tanto almejava até Marla Singer (Helena Bonham Carter), uma mulher que não sofre de nenhuma maleita terminal, se intrometer nos mesmos grupos, reflectindo assim a sua farsa e fazendo com que o Narrador reverta o seu estado de paz interior. É nesta altura que ele conhece Tyler Durden (Brad Pitt), um fabricante de sabão que, depois de o introduzir a uma ideologia libertária e desprovida de bens materiais, o leva a iniciar uma luta entre os dois, formando assim um grupo secreto reservado a homens conhecido como "Clube de Combate".

Fight Club, tal como o livro em que é baseado, é uma negra critica à sociedade consumista e à dependência dos bens materiais ou, nas palavras de Tyler Durden: "As coisas que tu possuis, acabam por te possuir". É também uma critica ao machismo tóxico e ao anarquismo ideológico, mas relativamente a esses pontos, já lá chegarei.


SPOILER ALERT: Tendo um dos mais famosos e bem elaborados plot twists do cinema, é-nos revelado, perto do final, que o Narrador e Tyler Durden são a mesma pessoa, sendo que Tyler, fruto da imaginação do personagem de Edward Norton, assume o controlo, tornando-se na persona mais dominante e influente dos dois, sem que o Narrador tenha qualquer controlo sobre a sua dupla personalidade, pelos menos conscientemente.

Tyler é o completo oposto do Narrador: é extrovertido, desvaloriza a opinião que outras pessoas possam ter de si, é despegado de bens materiais, tem empregos temporários que servem para pagar as contas básicas (onde pelo meio urina em sopa ou insere frames de material pornográfico em películas de filmes familiares) e descreve como a grande crise desta geração o facto de estrem vivos.

A aparição de Tyler Durden surge como uma manifestação do id do Narrador. Tyler é livre em todos os aspectos que ele não é, mas, no seu íntimo, desejaria ser. Ainda que uma manifestação levada ao extremo. Esta revelação é pressagiada habilmente ao longo do primeiro acto do filme. Fruto da depressão e insónia, Tyler aparece 4 vezes ao Narrador, de cada vez, em 1 frame fugaz inserido no filme (semelhante ao que Tyler faz na sala de projecção), o que devia ser um momento de ligeira confusão para quem estivesse numa sala de cinema, em 1999, sem a capacidade de parar e fazer "rewind" para conferir o que aquilo foi (o Home Cinema veio estragar tudo)! Para além disso, por duas ocasiões, é possivel vislumbrar Tyler esparramado na tela antes da apresentação formal. Estas visões deixam de acontecer quando o Narrador encontra Paz interior e libertação através do choro e testemunho da dor alheia, mas regressam com a entrada de Marla em cena.

Com Fight Club, a figura de Tyler Durden ficou impressa na cultura popular como símbolo de liberação, masculinidade e anti-consumismo. Uma forma de heroi (ou anti-heroi) moderno. No entanto, Tyler acaba por ser o vilão da narrativa, mesmo que o espectador não se aperceba.



Fight Club cai numa sub-categoria de filmes que aborda o conceito de Alter-Ego. Tipicamente temos o personagem principal, cuja personalidade apresenta falhas (geralmente de acordo com o conceito socialmente aceitável), que podem incluir conformismo, falta de coragem, introversão, medo do confronto directo (entre muitas outras variáveis), podendo estas características serem resumidas no conceito do nosso personagem não estar a aproveitar a vida em pleno. O Alter-Ego surge geralmente em forma de dupla personalidade (ou, mais correctamente, Distúrbio de Identidade Dissociativa) - Fight Club, Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1931), Me, Myself and Irene (2000) (sim, o filme com Jim Carrey, com o conceito muito mal explorado) - ou de um factor externo que faz o personagem revelar o seu id - Spider Man 3 (2007), The Mask (1994) (sim, o filme com Jim Carrey, com o conceito muito melhor explorado). Geralmente esta manifestação de personalidade é apresentada como positiva inicialmente, mas com a revelação do lado negro que isso implica, a resolução caminha no sentido de suprimir (matar) o Alter-Ego, ficando o nosso herói com a personalidade melhorada, mas sem os efeitos nefastos daquela relação.

 Fight Club não é diferente. Tyler, que no início se apresenta como um tipo que vive a vida no momento, sem se importar com estatutos, com uma filosofia de vida liberal, acaba por se revelar um anarquista radical. O sentido mais extremo do conceito da libertação através da destruição do capitalismo. Tyler promove actos de vandalismo que, embora em pequena escala inicialmente, se transformam em actos de terrorismo organizado. Ao mesmo tempo, a sua ideologia de libertar as pessoas da tirania consumista da sociedade e dos seus empregos sem sentido, transforma-se numa espécie de regime totalitário com a criação do Projecto Destruição, onde os militantes - macacos espaciais - são submetidos a uma lavagem cerebral, são desprovidos de nomes e lhes é aplicada a doutrina "Durdeana" através de um megafone enquanto trabalham. Os seus ideais de anti-capitalismo acabam por provocar milhões de dólares em prejuízos, a morte de um dos macacos espaciais e um plano para apagar o registo de dívidas (destruir os edifícios-sede das companhias de cartões de crédito) bastante questionável, gerando uma potencial crise financeira mundial e mortes, fruto da queda dos edifícios (o 11 de Setembro estava a 2 anos de despertar consciências para a física da derrocada imobiliária).


É neste contexto que vemos o machismo tóxico, como forma dominadora e destrutiva (o clube é só para homens). Curiosamente, este assunto seria igualmente abordado no ano seguinte em American Psycho, um filme que também aborda o conceito de Alter-Ego, ainda que de uma forma mais subtil, com a construção de uma crítica ácida ao consumismo, corporativismo e a despersonalização do elemento humano, mas desta vez ao lado de um personagem de "colarinho branco".

Como tal, o Alter-Ego tem de ser eliminado. A morte de Tyler (através de um método bastante questionável) representa a castração dos elementos negros do id e a assimilação de características mais socialmente positivamente libertadoras por parte do Narrador. No entanto, até o final do filme tende para o tradicionalismo, com o Narrador e Marla a ficarem aparentemente romanticamente ligados, quando, enquanto Tyler, a sua relação era apenas de coiso!

 O filme conta ainda com Meat Loaf e Jared Leto (que também participaria em American Psycho!).


quarta-feira, 25 de abril de 2018

Collateral (Colateral) - O Vilão Faz-se de Consciência


Michael Mann é um realizador no mínimo curioso. A sua carreira é preenchida de clássicos do cinema moderno - Manhunter - Caçada ao Amanhecer (1986), O Último dos Moicanos (1992), Heat - Cidade Sob Pressão (1995), o Informador (1999) - e de filmes que vão desde o vulgar - Miami Vice (2006), Inimigos Públicos (2009), Blackhat - Ameaça na Rede (2015) - até ao concretamente mau - O Guardador do Mal (1983). No meio deste lote existe um thriller neo-noir, muitas vezes negligenciado, que é talvez o melhor estudo de carácter de personagens da filmografia do realizador: Colateral

Lançado em 2004, Colateral abre com Vincent (Tom Cruise) a chegar ao Aeroporto de Los Angeles. Vincent é um assassino contratado que está na cidade para eliminar alvos do seu mais recente "trabalho". Para isso recruta os serviços do ingénuo taxista Max (Jamie Foxx). Depois da primeira vitima de Vincent aterrar em cima do tejadilho do seu táxi, Max fica refém e é obrigado a conduzir Vincent ao longo da noite para que este possa concluir o seu contrato.


Colateral é mais que um simples filme sobre o confronto entre um assassino e um homem vulgar. É, acima de tudo, a construção de carácter entre dois homens, a sua conexão e dualidade ao longo de quase duas horas de intensidade trabalhada com mestria.
O argumento é da autoria de Stuart Beattie (Piratas da Caraíbas - A Maldição do Pérola Negra) e o foco no confronto entre Vincent e Max traz ao espectador uma construção sólida dos personagens à medida que a noite avança. Somos convidados a entrar na pele de Max, o herói da história, o homem vulgar que se vê de repente numa situação entre a vida e a morte em que tem de se adaptar se quiser sobreviver e parar Vincent.

Embora o assassino de Cruise seja em quase todos os aspectos frio e desprezível, não é de todo um vilão unidimensional. Pelo contrário, é profundamente humano e serve, por vezes, como uma voz da consciência de Max.
Vincent encara o seu trabalho como outro qualquer. Para ele, a vida humana é sobrevalorizada e questiona porque é que nos devíamos preocupar se uma pessoa desconhecida morre, quando não damos valor quando milhares de pessoas morrem por causa de atentados e guerras. Descobrimos um pouco mais do seu passado, à medida que se deixa revelar ao taxista.



Max, por sua vez, é trabalhador, metódico, tem orgulho em ser o melhor naquilo que faz. Mantém o seu táxi impecável e conhece a cidade como a palma das mãos e os seus horários.
Falta-lhe, no entanto, coragem. Coragem para perseguir os seus sonhos. Mantêm a sua ocupação há demasiado tempo e o objectivo de construir uma firma de limusinas não passa de um projecto na sua cabeça.

Aqui Vincent entra como um agente de consciência. Quando Foxx questiona a sua actividade e desrespeito pela vida humana, Cruise confronta-o com a sua passividade e o facto de nem ele nem grande parte das pessoas aproveitarem a vida da melhor maneira. E o filme providencia uma narrativa sólida que faz destes dois personagens pessoas profundamente humanas, embora um seja a antítese do outro.


Para além do confronto pessoal, esta obra intercala também sequências de acção muito bem construídas, onde Tom Cruise brilha tanto nas cenas com armas como nas de luta corpo-a-corpo. Destaque para uma cena de exterior num beco ("Hey, homie! Is that my briefcase?") e a sequência na discoteca muito bem trabalhada.
Com uma fotografia magistral, Michael Mann dá vida a uma Los Angeles nocturna como pouco se vê no cinema. A cidade é como um terceiro personagem que acompanha Vincent e Max ao longo da noite.

Destaque ainda para a decisão de filmar grande parte do filme em digital, em que a qualidade dá um sentido de hiperrealismo quase documental ao filme.
Com duas nomeações aos Óscar, incluindo para o taxista de Jamie Foxx, o filme conta ainda com Jada Pinkett Smith, Mark Rufallo, e Javier Bardem numa das suas primeiras incursões pelo cinema americano.

domingo, 8 de abril de 2018

Three Bilboards outside Ebbing, Missouri (Três Cartazes à Beira da Estrada) - A (des)Conexão do Anti-Herói


Uma característica comum da maioria dos filmes mainstream de sucesso, tanto actuais, como mais antigos, é a força moral do ou dos protagonistas em relação ao espectador. Para envolver a audiência, o(s) personagem(s) tem de partilhar um código de conduta que se relacione connosco ou que, ao longo da história, esse código seja adquirido através de desenvolvimento de carácter. Ou o cineasta decide apresentar o herói "perfeito", com os seus valores morais já estabelecidos desde o início ou, como vem sendo habitual nos filmes com mais substância, o protagonista surge com uma ou múltiplas imperfeições e, ao longo da acção vai apreendendo características redimíveis. Se isso não acontecer, geralmente significa que estamos a falar do vilão da nossa história (veja-se o caso, ainda que debatível, do Daniel Plainview de Daniel-Day Lewis em There Will Be Blood).

Three Billboards Outside of Ebbing, Missouri reverte esta convenção e dá-nos uma heroína, ou antes uma anti-heroína que, apesar das suas acções muitas vezes questionáveis, tem a habilidade de se relacionar com o espectador, pelo menos até certo ponto.


Three Billboards (...) é a terceira longa-metragem de Martin McDonagh, responsável por duas comédias negras notáveis, Em Bruges (2008) e o profundamente meta-linguístico Sete Psicopatas (2012). Desta vez o realizador e argumentista apresenta-nos uma mulher no papel de protagonista, a consistente Frances McDormand, que dá vida a Mildred Hayes, numa interpretação que lhe valeu, e muito bem, o seu segundo Óscar.
Mildred vive numa pequena localidade do interior onde todos se conhecem. Ela é a mãe de Angela, uma adolescente que foi brutalmente violada e assassinada 7 meses atrás. Insatisfeita com o resultado infrutífero das investigações, Mildred decide alugar 3 cartazes publicitários à beira da estrada remota à entrada da vila, com acusações de negligência ao chefe da polícia local, Willoughby (Woody Harrelson).

O filme, embora à primeira vista apresente uma premissa com o qual o espectador se pode relacionar plenamente - a motivação que move uma mãe para que o assassino da sua filha seja encontrado - leva-nos, no entanto, a questionar as acções da protagonista. É neste dilema moral que a obra se destaca e obriga a quem a vê a se questionar se as atitudes desta mãe são ou não aceitáveis.
Todas as acções de Mildred são, no seu essencial, profundamente egoístas. As mensagens dos cartazes afectam toda a pequena vila, de uma forma ou de outra. Os elementos da Policia ficam mal vistos apesar de, como se vem a descobrir, a falta de pistas e suspeitos levar a investigação a um beco sem saída; o filho de Mildred é gozado e insultado na escola; Mildred leva o caso à televisão, pondo o resto do país com os olhos na localidade. Nem a revelação de que Willoughby tem um cancro terminal demove a mulher da sua determinação.


Frances McDormand afirmou que construiu a sua Mildred com base sobretudo numa pessoa e nos seus personagens do grande ecrã: John Wayne. E isso é notável na sua personalidade. Mildred é uma mulher dura, inflexível, determinada, marcada pela vida. No entanto isso não evita que algumas das suas acções sejam profundamente questionáveis pelo espectador, tais como dar pontapés na virilha de dois estudantes ou incendiar a esquadra de polícia por pressupor, sem provas, que os cartazes teriam sido incendiados por algum dos guardas.

O filme preenche as suas personagens com culpa, remorso e preconceito. Dixon (um soberbo Sam Rockwell), com o seu racismo que tem de "engolir" um chefe de policia negro, o ex-marido de Mildred com a sua violência doméstica e a sua namorada de 19 anos e mesmo a própria protagonista com o seu desdém perante o anão James (Peter Dinklage) e o embaraço de ser vista junta com ele no restaurante. Aliás, de todos os elementos principais da história, só Willoughby parece ter qualidades redentoras aos olhos do espectador.


Martin McDonagh confronta-nos com personagens essencialmente humanas, cheias de defeitos, mas que não obrigam necessariamente ao espectador a ter de se conectar com as mesmas plenamente. Aliás, o seu objectivo não era esse, mas sim o de levantar questões sobre a aprovação das acções e atitudes exibidas no ecrã pelos protagonistas. E consegue-o de uma forma exemplar.
No fim, não há qualquer tipo de redenção para Mildred. Ela continua a ser preconceituosa, egoísta, impulsiva, enquanto ela e Dixon avançam em direcção a um objectivo incerto e que certamente só lhes trará mais remorso.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Mother! - Sem spoils, nem explicações

---- A vasta equipa de redacção do Varejador deseja aos seus leitores (todos os 4) votos de boas entradas (que na minha humilde opinião atingem o seu auge naquele pão alentejano a que se retira o miolo e se recheia com vários queijos) -----

Agora que estão as formalidades despachadas, meto uma imagem.

Em primeiro lugar, acho que o filme está óptimo.

Digo que o meu objectivo no comentário spoil-free é não dissolver nenhum dos ingredientes, causadores do trauma que carrego desde que o vi, na última noite de Natal. A circunstância temporal relevante (conhecendo temas de antemão) pode ter-me influenciado, mas diria que o motivo principal foi notar a coragem para criar uma obra controversa e de certo polarizada a nível da apreciação desde o minuto zero da sua concepção.

O objectivo de não dar explicações é que ainda não as sei concretizar. O Darren Aronofsky fez uma alegoria para abrirmos os olhos a

Uma Jennifer Lawrence e um Javier Bardem como Marido e Mulher, sem nomes próprios, que partilham uma Mansão isolada. Ambos excelentes um para o outro (ambos os actores excelentes, também), Ele esforça-se para escrever poesia e Ela para fazer várias reparações na casa após um incêndio que a danificou severamente. Ainda assim, é um filme de Terror.

Começa por bater-lhes à porta um outro Casal que se instala sem ponta de consideração pelos proprietários. Quebram as rotinas pré-existentes, a intimidade, os mais importantes bens pessoais.

Mais tarde, manifestam-se os Filhos deste casal, carregando uma rivalidade entre si que perturba o equilíbrio, a paciência e o recente estado de gestação dos donos originais.

Quem cresceu em Fátima e recebeu lições de de catequese da própria mãe (Mãe!), percebe que história é esta. Não é má, mas o livro é um bocado maçudo. 

No decorrer do Tempo e da acção, a chegada de novos "não-Convidados" ao Lar  aumenta o clima de ambiguidade da narrativa, fornece teorias mais divergentes nas metáforas que se associam aos motivos destes visitantes e presenteia uma ansiedade nos últimos trinta minutos que lembra o que aconteceria a um filme do Lars Von Trier em Crack.

Numa época com muitas produções com modelos ou arquétipos que preferem jogar pelo seguro, vão surgindo aqueles filmes (The Tree of Life, Only God Forgives e até o Get Out, que não é sobrevalorizado) que funcionam como um despertador para o sentido de gosto do público crítico e para as futuras intenções dos cineastas que trabalham para esse público.

domingo, 16 de julho de 2017

Baby Driver - A Diegese Sonora Como Elemento Visual


Edgar Wright é um mestre moderno. Com uma fornada de títulos bastante peculiares, que começou com o relativamente desconhecido A Fistful of Fingers e uma série de culto (Spaced), a notoriedade chegou em 2004 com Shaun of the Dead (cujo título em Português me recuso a pronunciar), uma comédia de zombies que servia como homenagem aos clássicos de terror, mas principalmente à saga de George A. Romero. A direcção, montagem, elementos de comédia visual e ritmo da obra chamaram a atenção e o resultado seria uma trilogia (conhecida como a trilogia do Cornetto), uma conversão com mestria dos graphic novels Scott Pilgrim vs. The World e uma mão no argumento de Ant Man.

Baby Driver surge como o primeiro título de Wright como argumentista a solo e o resultado é, mais uma vez, exemplar.
Baby (um improvável Ansel Elgort - A Culpa é da Estrelas, a saga Divergente) é um jovem com habilidade ao volante que, após ter roubado e destruído propriedade valiosa de Doc (Kevin Spacey), fica obrigado a "trabalhar" para este como condutor de get away de assaltos até pagar a sua dívida. A característica mais notável de Baby é a utilização constante de música para superar o tinnitus (ui! tinnitus? que é isso? vão procurar à wikipédia!) resultante de um acidente de infância.


Baby Driver é, mais uma vez uma criação exemplar de Edgar Wright, onde todos os pontos são tocados no sitio certo e, neste caso, literalmente! O filme é, em grande parte, uma sequência de acções coreografadas ao ritmo da música que Baby ouve. Cena inicial ao ritmo de Bellbottoms de Jon Spencer Blues Explosion sincronizada com o ritmo do assalto e limpa-pára-brisas! Tiroteio ao ritmo de Tequila? Sim, por favor! Ao contrário do que é habitual, a acção é motivada pela banda sonora e não o contrário. A grande parte da música é diegética, e isso ajuda a colocar o expectador no ouvidos de Baby e perceber que o seu mundo é feito em função da sua banda sonora.

Edgar Wright expande aqui conceitos que já vinha a utilizar desde Shaun of the Dead (a luta com o zombie no Winchester pub) e até mesmo desde Spaced e fá-lo de uma forma magistral, com a precisão de um relógio suíço. Wright usa mesmo auto-influências, se tivermos em conta que foi ele o responsável pelo videoclip de Blue Song, dos Mint Royale, em que Noel Fielding canta a canção no carro enquanto espera que os colegas terminem um assalto, enquanto se vai entretendo com os acessórios.


A montagem é, mais uma vez, um dos pontos fortes do filme, como já é hábito com Edgar Wright e ajuda a dar ritmo e fluência à historia. No entanto, ainda na tradição de Shaun of the Dead, o realizador brinda-nos de vez em quando com planos-sequência compostos, como é o exemplo da rotina de Baby, na sua demanda por café; um plano de mais de 3 minutos, com alguns "easter eggs" pelo caminho. De realçar ainda que as perseguições de carro são feitas na sua maioria com efeitos práticos o que ainda torna mais a acção mais realista e convincente.

O filme conta com um elenco notável, com actuações imaculadas, pelo menos na maioria dos casos. Ansel Elgort dá-nos o Baby cool e reservado de forma impecável, Kevin Spacey a fazer de Kevin Spacey resulta bastante bem e o homem nem precisa de se esforçar muito! Jamie Foxx mais uma vez a mostrar a sua versatilidade, no papel do tipo que toda a gente adora odear. Metam ainda Jon Hamm, Jon Bernthal, Eiza González (quem?), Flea (dos Red Hot Chilli Peppers) e temos obra feita.


Onde o filme perde um bocado, no entanto, é no argumento. Aqui o estilo é preponderante. A substância nem tanto. E isto é particularmente notável quando o interesse amoroso de Baby entra em cena. Lily James é Debora, a empregada de mesa por quem Baby se apaixona. Embora a relação seja perfeitamente plausível (mesmos interesses musicais), o desenvolvimento parece um pouco apressado e sem bases. Debora toma decisões bastante abruptas, que a podem pôr em perigo sem se questionar muito. No entanto, e apesar da história da película pecar um pouco por falta de conteúdo, isto não retira mérito ao filme.

Baby Driver combina música com o ritmo de acções na perfeição e só vem demonstrar que Edgar Wright está em forma e recomenda-se!