Parece haver nos filmes de acção
um hábito de pôr a profundidade e o carácter das personagens em segundo plano e dar prioridade às
sequências vistosas de luta, explosões e tiroteios de encher o olho. Não é de
admirar portanto que, embora o público não diga que não, é esse lote de filmes
que geralmente não caiem nas graças dos críticos. No entanto, de tempos a
tempos surge uma obra que resolve dar características humanas às personagens e
dotá-los de, espante-se, sentimentos. Equilibrium é um filme que se enquadra no
primeiro caso, mas invulgarmente também se enquadra no segundo. Realizado por
Kurt Wimmer, que antes deste filme (e depois também) tinha no seu curriculum um
punhado de argumentos de filmes medicores, Equilibrium supera tudo o que o seu
autor fez e roça a genialidade.
No
futuro, num mundo pós 3ª Guerra Mundial, a humanidade é quase completamente
dizimada em resultado do conflito. Para evitar uma 4ª Guerra e consequente
extermínio total da raça humana, cria-se um governo totalitário, numa nação
unificada (onde aparentemente todos aprendem a falar Inglês) e com um líder
supremo: o Pai. Cria-se então uma substância (Prozium) que, quando injectada
diariamente, erradica a fonte de todo o mal: os sentimentos.
Não
se enganem, Equilibrium é um filme de acção, com cenas “over-the-top”, mas
trata a questão dos sentimentos e liberdade de expressão de uma forma tão
cuidadosa que conseguimos realmente apreciar as sequências de luta sem ter de
desligar o cérebro. Numa sociedade onde o pensamento livre é uma ameaça e com a
existência de uma força especial, os Clerics, que procuram e aniquilam pessoas
que sentem, o filme é uma clara referência a regimes ditatoriais, onde a
liberdade é uma ameaça. Para além disso existem também referêcias religiosas,
com o “Pai” a ser uma figura divina para todo o mundo, mas que nunca ninguém
viu pessoalmente.
Mas
o brilhantismo de Equilibrium não está realmente nestas mensagens, mas sim na
forma como são tratados os sentimentos. Wimmer podia muito bem ter feito um
filme genérico onde a supressão dos sentimentos poderia significar simplesmente
que um indivíduo deixa de sentir amor, ódio, tristeza, alegria... Mas não é
assim tão simples. Quando uma pessoa deixa de sentir, as sensações visuais,
auditivas, sensoriais e tácteis também desaparecem. Os individuos, totalmente
desprovidos de sentimentos, são como robôs, autómatos, sem conseguir dar valor
ás pequenas coisas que os rodeiam. E é nestas pequenas coisas que se vê a
multidimensionalidade dos sentimentos. Para prevenir uma estimulação externa do
sentir, são abolidas as cores: o mundo que rodeia as personagens é totalmente
preto, branco e cinzento; a música é abolida e até obras de arte como quadros
são destruidos. Naquela que é talvez uma das melhores cenas da história do
cinema (não, não estou a exagerar), o Cleric John Preston (Christian Bale),
depois de ter falhado a sua dose diária de Prozium, começa a sentir e
levanta-se atormentado por pesadelos da sua vida passada. Quando Preston vê o
Sol a nascer através da sua janela, a luz que atravessa o plástico opaco,
insurge-o a removê-lo e pode finalmente, juntamente com o espectador, apreciar
o nascer do Sol e sentir o seu calor no seu corpo. E nós sentimo-lo também.
Pequenas
coisas como as cores naturais nas caras dos personagens que sentem e o cinzento
pálido nas que não possuem sentimentos, o cuidado com que a mulher de Preston
dobra a roupa do seu marido, significando que ela o ama, o passar de mão pelo
corrimão de metal frio para o poder sentir, a primeira vez que Preston chora ao ouvir Beethoven, as pequenas pistas que o personagem
de Sean Bean – e sim, ele morre! – nos dá antes de ser desmascarado, tudo isto
fazem de Equilibrium um filme que deve ser visto e revisto. Uma obra que foi um
verdadeiro fracasso de bilheteira, mas que foi ganhando alguma notabilidade
depois de ter sido lançado em DVD.