sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Femme Fatale no Film Noir


Maltese Falcon (1941)

Não se pode falar em femme fatale sem antes perceber o que é o film noir. Então comecemos por aí!

O film noir é tido como um género cinematográfico, embora muitas pessoas não estejam de acordo. No entanto, este género tem provas dadas de que não é uma mera atmosfera que o espectador vê e sente num filme. É muito mais do que isso, pois possui as suas próprias características que são, facilmente, reconhecidas e das quais irei falar posteriormente. 

O film noir surge durante a II Guerra Mundial - um período negro da história da humanidade. Daqui nasce o espírito deste género: a escuridão, as sombras, o pessimismo, a tristeza e a incerteza. Surge nos Estados Unidos, influenciado pelo expressionismo alemão e pelo realismo poético francês, assim como, por livros escritos na altura da Grande Depressão e por filmes de gangsters e de crimes. Depois do início da Guerra Fria, o film noir entrou em decadência, em grande parte devido ao facto de aquela altura negra e umbrosa, estar-se a desvanecer, entrando-se assim, numa fase mais optimista e jovial. No entanto, não se extinguiu por completo. Hoje em dia, há muitos filmes com uma estrutura semelhante à deste género. Geralmente, estes filmes são designados por filmes neo-noir. “Chinatown, “Instinto Fatal” e “Memento”, são alguns exemplares destes novos filmes, onde podemos ver aspectos comuns ao film noir. Se examinarmos “Instinto Fatal” é simples de averiguar que a personagem feminina identifica-se com uma femme fatale. Ela é atraente e manipuladora. Mas as semelhanças deste filme com o género não acabam por aqui. Temos, ainda, a existência de um crime e de um detective que detém um passado refutável.

O período clássico do film noir inicia-se, então, em 1941, com o filme Maltese Falcon (embora, haja quem aluda ao filme Stranger on the Third Floor, de 1940, como a primeira obra deste género), já no período mais intenso da guerra. E termina, em 1958, com o filme Touch of Evil, aquando da Guerra Fria. Tudo isto vai culminar, na atmosfera destes filmes: o derrotismo, o clima de angústia e inquietação e tudo o que aponte para um lado obscuro da vida e até da própria mente. Curiosamente, o termo film noir só começou a ser utilizado algum tempo depois deste género cinematográfico ter aparecido, pela crítica francesa. Durante este período, em que o film noir vivia a sua era de ouro, surgiram muitas obras de grande valor como, por exemplo, Double Indemnity, Out of the Past, Naked City, The Postman Always Rings Twice, Big Sleep e Leave Her to Heaven.

Como já disse inicialmente, o film noir, possui características próprias. Tematicamente, fala, na sua maioria, de crimes, traições, tragédias, manipulação, vingança e, resumindo, da ambiguidade moral daqueles que fazem parte da narrativa. É comum encontrarmos um detective à procura de respostas para um crime, com um cigarro numa mão e um copo na outra. Este detective, ao longo do caminho, é levado a entrar em vias mais tenebrosas e sinistras, muito pouco íntegras e honestas. Estilisticamente, podem ser referidos alguns aspectos facilmente atingíveis neste tipo de filmes com a fotografia ser a preto e branco, possuir um contraste abundante, ter uma iluminação especial (tanto em cenários de interior, como de exterior), que nos dá uma sensação de penumbra, e possuir muitas sombras. Vemos muitas vezes, principalmente em cenários exteriores, névoas que ajudam a criar o ambiente tisnado do filme. Socorrerem-se, também, do uso de ângulos de câmara fora do comum como, por exemplo os dutch angles, que normalmente, pretendem transmitir tensão ou quando a personagem tem algum tipo de perturbação mental. Outra particularidade é o som. Um elemento que abarca importância em qualquer filme e, consequentemente, também no film noir. Usualmente ouvem-se os sons da cidade: os comboios, os carros a travar, as portas e os sapatos a bater no chão. Tudo isto, mais uma vez, para criar a atmosfera do filme. Devemos ainda, referir os aspectos narrativos. É muito comum a personagem masculina nos contar, em voice-off, aquilo que se passou consigo, um tanto ou quanto arrependido, mostrando-nos o seu sentimento de culpa e auto-analisando-se. Assim, vemos também o recurso a analepse (flashback), que é muito frequente no film noir. Porém, há uma outra característica importante neste género, que algumas vezes é deixada de parte: as personagens.

Touch of Evil (1958)

No film noir encontramos tipos de personagens que, anteriormente, não existiam ou que não estavam tão bem definidas como se encontram neste género. O protagonista deixa de ser o herói que tudo faz para salvar a sua donzela, deixando de ser a imagem perfeita que a sociedade procurava. Passa, então, a ser um homem dúbio, que não sabe se há-de prosseguir de acordo com o bem ou se envereda pelo lado mau. Esta última hipótese é a mais comum, senão mesmo a única e, raramente, ele segue o caminho do bem, pelo menos de uma forma transparente. Ele acaba sempre por valer-se de actos contestáveis. Assim, o anti-herói vai, ao longo do filme, passar por situações que vão exacerbar a sua solidão e as suas atitudes pouco correctas.

Depois temos a femme fatale, que é a personagem feminina da trama. Esta é uma mulher belíssima e sedutora, que vemos sempre admiravelmente vestida e arranjada, mas é, em igual escala, muito fatal, tal como percebemos pelo seu nome. Esta femme vai levar o anti-herói a sua destruição, mas normalmente, acaba por cair na sua própria teia e é, também, arruinada. Poderíamos dizer que não há muito mais a contar sobre a femme fatale... No entanto, há uma característica que é muito importante referir. Esta particularidade está relacionada com a evolução do papel da mulher na sociedade.

Desde que há memória que a mulher era obrigada a diminuir-se perante os homens. Nos primórdios da civilização fazia-o pois necessitava da sua protecção. Isto foi continuando a acontecer de outras maneiras, fazendo com que o homem acabasse por adquirir um certo poder sobre ela. No entanto, os tempos mudam e o papel da mulher foi sofrendo avanços.

Na altura em que surge o film noir, a mulher começa a cultivar cada vez mais a sua emancipação, que já tinha-se iniciado na I Guerra Mundial. Sem homens para trabalhar, pois estavam na linha de batalha, as mulheres acabaram por ocupar os seus postos de trabalho, ganhando independência financeira, o que lhes concedeu uma liberdade de condutas que até então, não tinham.

As femmes fatales representam então essas mulheres, que surgem agora como o sexo forte, independentes, sem necessidade de um homem para as sustentar. Muitas vezes, a femme fatale, no film noir, é profundamente mais do que uma mera predadora sexual, acabando por ser mais agressiva que os próprios homens, sendo ela a manipuladora. Ela tanto pode ter um batom na mão, como no momento a seguir ter uma arma. O film noir exibe, também, um outro direito que a mulher adquiriu. Esse direito foi precisamente, poder aceitar o seu lado sexual, algo que até então era reprimido. As femme fatales possuem uma carga erótica muito elevada. Isto era algo em que as mulheres, na altura, não detinham controlo. Até se casarem eram propriedade do pai, depois do marido, e tinham que lhes obedecer cegamente. Neste século, todas estas regras impostas pela sociedade, acabaram por se alterar. Os filmes deste género vieram demonstrar isso mesmo e a femme fatale personificou os desejos das mulheres. Todavia personificou-os através de uma visão masculina, fazendo parecer que os objectivos feministas da altura eram meros devaneios de mulher e que o destino se encarregaria de lhes por um fim cruel e, de certa forma, vingativo, pois se analisarmos bem, a femme fatale também tem, maioritariamente, um final trágico. Esse fim dado à personagem deve-se a um tentativa masculina de continuar a controlar as mulheres, pois este novo papel não era bem aceite na sociedade, e de arranjar alguma coisa que lhes confortasse e acalmasse os seus receios.

Quando o film noir entrou em decadência, este modelo de mulher acabou por ser deslocado para outros géneros, daí se nos questionares se existe femme fatale fora do film noir podemos entender que sim. Actualmente, já não se pode falar de film noir per si. Há sempre uma mistura de géneros. Analisando, por exemplo, o caso dos filmes do agente secreto James Bond, vemos que as Bond Girls, podem ser consideradas como femmes fatales, mesmo que um pouco diferentes das clássicas como, Lauren Bacall e Lana Turner nos habituaram. No entanto, estes filmes são mais recentes e inserem-se nos filmes de acção ou até thrillers e, não tanto, nos film noir. Mesmo os aspectos técnicos possuem diferenças, desde a iluminação à cor da fotografia. Porém, acho que dá para perceber as suas semelhanças que, embora não sendo estilísticas, são narrativas e tematicamente. E a femme fatale é das características que conseguimos relacionar com mais facilidade. Elas continuam a existir ainda hoje. São mulheres como uma beleza arrasadora que controlam cada vez mais a sua própria vida, sem prestarem justificações a mais ninguém. E, presentemente, já não têm finais trágicos com tanta frequência, mas destroem, facilmente, quem se coloca no seu caminho. Isto demonstra que a mulher assume, gradualmente, as rédeas de toda a sua existência – corpo e alma.

The Postman Always Rings Twice (1946)

Resumindo, seja qual for a opinião do espectador relativamente ao film noir, estes exploram o lado recôndito das pessoas, aquilo que temos guardado dentro de nós e nos esforçamos compulsivamente para controlar, fazendo jus ao que o seu nome significa (literalmente, filme preto). E a femme fatale é muito mais do que uma simples personagem feminina. Esta engloba uma significação muito importante para todas as mulheres, pois representa a emancipação e libertação feminina da altura e o esforço de uma sociedade para que tal lhes seja interdito. Com o avançar do tempo, este modelo de mulher fatal foi se adaptando e existe, contemporaneamente, fora do film noir, mostrando que os tempos em que a mulher se submetia a tudo o que lhe era exigido acabaram.

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